quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Pinheirinho: "quem apanha, lembra"

por Carlos Latuff

Este texto é um desabafo. Não pretendo que seja uma análise aprofundada. Outros artigos estão sendo escritos com esse propósito, por gente bem mais capacitada que eu. Expresso aqui a revolta que contamina meu coração desde domingo passado, quando acordei com a notícia de que os milhares de moradores do Pinheirinho, em São José dos Campos, estavam sendo desalojados.

Foto: Kit Gaion

Estive lá na semana passada, numa visita de solidariedade àquelas pessoas que estavam na iminência de serem despejadas de um terreno que ocupavam desde 2004. A juíza Márcia Faria Mathey Loureiro, da 6ª Vara Cível de São José dos Campos, assinou a reintegração de posse (pomposo termo jurídico para despejo) em favor do senhor Naji Robert Nahas, notório especulador cujo nome aparece nas manchetes de jornal associado a crimes como lavagem de dinheiro, formação de quadrilha e evasão de divisas.

Foram muitos os esforços para tentar deter o despejo, de advogados que se voluntariaram a ajudar os moradores do Pinheirinho, até sindicalistas, militantes de partidos de esquerda, movimento dos sem-teto, dos sem-terra, parlamentares, artistas como o rapper Emicida. Formou-se uma verdadeira rede de apoio, como há muito eu não via. Fiz questão de visitar o Pinheirinho porque queria fazer mais por aqueles moradores do que simplesmente desenhar charges. Fiz questão tambem de registrar imagens da ocupação, sempre mostrada pela imprensa como um acampamento de rebeldes que armados de paus e pedras se recusavam a acatar pacificamente uma ordem judicial.

O que encontrei não foi surpresa. Estive em visita a ocupações urbanas e rurais por algumas vezes na vida. Os moradores do Pinheirinho me lembravam os camponeses que conheci em Rondônia e no Paraguai. Aqueles olhares, os sorrisos de boas vindas e os pés descalços, gente humilde, de poucos recursos mas de muita coragem, que precisa de terra pra viver, e não para a especulação imobiliária. No Pinheirinho conheci uma família que saiu do interior da Bahia, onde sobreviviam do que conseguiam achar num lixão, e que construíram uma vida nova a custa de muito trabalho. O pai catando materiais recicláveis, a mãe vendendo secos e molhados em casa e a filha fazendo fraldas descartáveis. Tenho até hoje o papelzinho com o preço das fraldas. Conheci também o seu Jaime, um paranaense que veio com a família, e que me mostrou orgulhoso a horta que cuidou com tanto carinho, incluindo os pés de café que trouxe do Paraná. Visitei a Pamela e sua filhinha de 30 dias, e vi seu quintal, todo decorado pelo seu companheiro com brinquedos coloridos.

Vi crianças jogando bola, brincando no chão de terra enlameado depois da chuva, vi a jovem mãe levando seu filho no carrinho, tentando desviar das poças de lama. Com um celular ia compartilhando estas imagens com os internautas. Queria que todos vissem de que se tratava de gente, de carne, osso e alma, e não apenas figuras sem nome no noticiário da TV. Por esse exercício de humanidade não passam os que usam suas canetas de ouro para assinar ordens de despejo, nem tão pouco os policiais que as cumprem.

É comum a gente imaginar que por trás dessas decisões judiciais estejam figuras engravatadas que tem prazer em desalojar famílias pobres, que acham graça, riem, fazem piada, como vilões de filmes ou histórias em quadrinhos. Cheguei a conclusão de que não é bem assim. O despejo dos 9000 residentes daquele terreno foi uma ação burocrática, desprovida de sentimento. Fora os policiais militares, esses sim, que tem prazer em seu ofício brutal, os burocratas sequer tem contato com as vidas que destroem. As famílias do Pinheirinho são apenas obstáculos a serem removidos. Quando faço charges associando tais ações ao nazismo é porque identifico nelas a mesma ausência de humanidade. Penso em Adolf Eichmann e a tranquilidade com que descrevia o processo pelo qual deportou milhares para campos de concentração. Aquilo era para ele tão somente um ato administrativo. Nem a juíza Márcia Faria, nem Naji Nahas, nem o prefeito de São José dos Campos Eduardo Cury ou o governador de São Paulo Geraldo Alckmin se dispuseram a visitar a ocupação, já que seus moradores não são ninguém, não são nada além de um estorvo, um obstáculo ao império da ordem e da indústria imobiliária. Milhares de almas jogadas na rua, sem qualquer remorso ou compaixão, em favor de alguem que, diferente dos moradores do Pinheirinho, não precisa trabalhar para viver, sustenta-se através da falcatrua, da corrupção, das amizades influentes. Os moradores ficaram sem lar, mas os que os despejaram, voltaram para o conforto de suas casas.

Quem vai se lembrar daquela gente quando, no terreno onde antes havia o Pinheirinho, for construído um mega shopping center? Quem sabe o novo empreeendimento seja batizado como "Pinheirinho Mall" ou talvez a palavra Pinheirinho nem seja mais usada pela administração municipal, na tentativa de apagar de vez a memória do que antes foi uma ocupação. Mas como diz o ditado popular, "quem bate esquece, quem apanha lembra".

Carlos Latuff é cartunista

9 comentários:

  1. É exatamente a falta desse olhar para o outro que me tem tirado o sono e me deixado na perplexidade desde domingo. O outro não pode ser tratado como mero incômodo. Abs.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Também tenho perdido o sono por conta disso Lílian. No último sábado em Guarulhos houve um ato e passeata em solidariedade aos moradores e moradoras do Pinheirinho. Fui parado por um grupo de senhoras que fizeram questão de pegar o panfleto que eu estava distribuindo para rasgá-los na minha frente e dizerem com grande revolta "Vai procurar o que fazer seu vagabundo! O que eu tenho a ver com essa gente do Pinheirinho?!!!!" Nossa, não respondi nada, mas em casa chorei muiiiiiiiiiiiiiiito por perceber que as pessoas estão se tornando cada dia mais individualistas e insensíveis as dores alheias.

      Excluir
  2. Comovente relato, mais do que necessário no direito à memória das lutas da classe trabalhadora.

    ResponderExcluir
  3. Perfeita sua colocação mas faltou vc citar o juiz Rodrigo Capez que esteve todo tempo presente para evitar uma ordem que parasse a barbárie.

    ResponderExcluir
  4. Texto muito bem articulado, pois faz apontamentos justos e pontuados a respeito do massacre do Pinheirinho. Tenho pleno acordo com todos os argumentos aqui apresentados. Jamais esqueceremos esta atrocidade, pois somos todos Pinheirinho. Cada tiro, cada ação truculenta da PM em nome da justiça burguesa e com total apoio do prefeito de São José, Eduardo Cury (PSDB) e do governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB)foram golpes desferidos sobre cada um e cada uma de nós, trabalhadores e trabalhadoras.

    ResponderExcluir
  5. Dilma já se pronunuciou sobre o desabamento ocorrido ontem no Rio. No entanto, permanece calada com relação a Pinheirinho, sinceramente, estou bastante frustada com a omissão da presidenta, no que diz respeito a covarde reintegração de posse do Pinheirinho.


    E tem mais, ela (Dilma)esteve em São Paulo, recebendo homenagens do Kassab, este fato ocorreu ontem, 25/01/2012

    Enquanto isso...

    Os cidadãos que moravam em Pinheirinhos sofrem com a perda de suas casas, de seus familiares e amigos, mortos durante a covarde reintegração de posse.

    E, é claro! Dona Dilma permanece omissa à toda esta covardia feita aos desabrigados de suas casas, construídas com muita luta e suor!
    anisia-nascimento.blogspot.com­

    __________________________________________________________________


    Reintegração de posse no Pinheirinho - retrato da covardia!

    Estou extremamente indignada com esta situação. Como pode um governo jogar várias pessoas nas ruas?
    Trabalho com assistência social e o que tenho presenciado depois de reintegrações de posses são famílias desabrigadas, lares destruídos.
    Ainda não vi uma reintegração de posse em que todas as pessoas recebessem novas casas para morar. É o cúmulo! Governador de São o senhor está com sua consciência tranquila? Desculpa, nem perguntei se o senhor as tem, se esta palavra faz parte do seu vocabulário ou se existe no seu dicionário.
    E tem mais, a mesma burguesia que defende a expulsão das famílias vão cobrar dos trabalhadores da assistência sociall a retirada das pessoas das ruas como se elas não fossem responsáveis pelo caos social.

    FORA PSDB!
    Anisia Nascimento
    anisia-nascimento.blogspot.com

    __________________________________________________________________


    Massacres no Pinheirinho...Massacres e covardias pelo nosso imenso Brasil!
    Enquanto isso...
    Dona Dilma,excelentíssima presidenta da República Fedrativa do Brasil anda por aí feliz da vida, cumprindo sua "agendinha" política. Não está nem aí para Pinheirinho, para os covardemente expulsos de suas casas pelo governo do PSDB. Para os estudantes de Pernambuco. Aliás, o PT fez tantas alianças com os partidos de direita que já deixou de ser um partido de esquerda a muito tempo! Basta olharmos para o Pará e à autorização do governo Dilma/PT à favor da construção de Belo Monte.
    Anisia Nascimento
    anisia-nascimento.blogspot.com

    __________________________________________________________________


    Assassinos da democracia!, que sejam todos presos!
    Mas, no país da covardia, da corrupção, do etnocentrismo, do preconceito social, do capitalismo selvagem. O que acontecerá aos mandantes e executores dos crimes à população de Pinheirinho, aos estudantes de pernambuco, São Paulo,etc...?
    Anisia Nascimento
    anisia-nascimento.blogspot.com

    ResponderExcluir
  6. Sera que essas pessoas,IMPORTANTES, conseguem dormir sabendo que 6000 brasileiros perderam sua dignidade e estão( como podemos ver em fotos do UOl) farrapos humanos, por causa de seus atos.

    ResponderExcluir
  7. Ponham elas nas suas casa então, ou deixe-as invadirem seus terrenos para ter um lar justo. Pimenta nos olhos dos outros é refresco.
    Invasão de terreno privado ou publico é crime contra a propriedade.

    ResponderExcluir
  8. o terreno já não cumpria função nenhuma a um bom tempo, tem milhões de reais atrasados em impostos, o dono um ladrão sem vergonha, corrupto e mentiroso... mas isso não é problema nenhum, afinal, o "cara" tem dinheiro, tadinho o tereno é dele, mesmo ele sendo um pilantra é mais justo o terreno voltar pras mãos imunda dele, do que pra centenas de pessoas trabalhadoras, elas não precisariam invadir terreno algum se o vagabundo do prefeito fizesse mais moradias dignas na cidade, e mais, as demais familias que estão na espera por casas da cdhu, se forem procurar a fundo verão que recebem dois ou mais salarios minimos, enquanto que a maioria das familias do pinheirinho eram catadores de reciclagem, ou autonomos! é facil falar que tem paciencia em esperar 6, 8 ou 10 anos por casa quando se recebe R$1800,00, queria ver se recebessem R$600,00 para sustentar uma familia de cinco pessoas, ou de dez pessoas.... Pinheirinho estou com vocês!!! leila taubaté

    ResponderExcluir